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2 de setembro de 2013

As Bodas de Sangue de García Lorca e Carlos Saura

A seguir, artigo que propõe uma análise comparativa entre a peça Bodas de Sangue, de Federico García Lorca, com o filme homônimo de Carlos Saura. A análise visa comparar a recriação da obra de Lorca por Saura a partir do conceito de Gilles Deleuze de “teatro menor”, entendendo que o cineasta não faz uma versão fílmica da peça de Lorca, mas sim um ensaio crítico operado pela subtração para a constituição. Carlos Saura usa o cinema e o flamenco para criar Bodas de Sangue que, ao mesmo tempo em que não é uma recriação da peça de Lorca — pois subtrai elementos fundamentais da obra original, como as falas da peça — apresenta-se fundamentalmente como uma obra lorquiana por meio do uso do flamenco.

As Bodas de Sangue de García Lorca e Carlos Saura


1 Introdução
Federico García Lorca foi músico, poeta, dramaturgo e desenhista. Mais do que um escritor, Lorca transitou por distintas manifestações artísticas, musicando poemas, poetizando o teatro e construindo obras de arte que não podem ser catalogadas em apenas um gênero artístico. Oriundo da região da Andaluzia, Lorca foi influenciado pelo multifacetário sul da Espanha e sua cultura de origem árabe, cigana e católica, criando uma arte repleta de poesia e música, luz e sombra. Das obras dramáticas de Lorca, três delas contam com maior êxito mundial, compondo a “trilogia rural” lorquiana, e a obra que inicia a trilogia é Bodas de Sangue (1928), considerada a primeira peça trágica do escritor. Assim, a proposta deste trabalho é apresentar uma análise comparativa entre a peça de García Lorca e o filme homônimo de Carlos Saura (1981). A presente análise visa comparar a recriação da obra de Lorca por Saura a partir do conceito de Gilles Deleuze de “teatro menor”, entendendo que o cineasta não faz uma versão fílmica da peça de Lorca, mas sim um ensaio crítico operado pela subtração para a constituição. Deleuze coloca que é a partir do processo de amputação que se faz nascer algo de inesperado.
Para tanto, na primeira parte do texto procura-se pensar no processo de criação de Lorca a partir de um elemento fundamental da cultura andaluza: o flamenco. Essa arte oriunda do sul da Espanha não é somente uma música ou um baile, mas a expressão dos ciganos, um povo marginalizado que por séculos chorou suas penas nas noites regadas à vinho, música e dança. Com isso, a presente análise visa apresentar como Carlos Saura usa o cinema e o flamenco para criar Bodas de Sangue que, ao mesmo tempo em que não é uma recriação da peça de Lorca — pois subtrai elementos fundamentais da obra original, como as falas da peça — apresenta-se fundamentalmente como uma obra lorquiana por meio do uso do flamenco. A matéria-prima fundamental do flamenco é o mundo das paixões e com isso esta manifestação artística espanhola é uma interessante ferramenta com a qual Saura expressar o não dito em seu filme. E a partir desta análise é possível identificar e comparar como o Lorca, escritor, usa a poesia e a prosa como elemento fundamental para a criação de seu teatro, e como Saura usa a dança flamenca como meio de expressão em seu cinema.
2 Bodas de Sangue de Lorca e o flamenco
Federico García Lorca falou certa vez sobre seu método de criação:
“figuras reais, tema rigorosamente autêntico... primeiro, anotações, observações tomadas da vida mesmo, do jornal às vezes... depois, um pensar em torno do assunto. Um longo pensar, constante. E, por último, o translado definitivo da cabeça para a cena” (apud MARTÍN, 1998, p: 192).
Tal afirmação de Lorca levou muitos estudiosos a relacionar Bodas de Sangue, peça escrita entre 1928 e 1933, a um assassinato ocorrido no ano de 1928, e que foi amplamente divulgado pela imprensa espanhola.
No jornal ABC, em 24 de agosto de 1928, circulou a manchete “Crime desenrolado em circunstâncias misteriosas”. O fato referia-se a um casamento em Almería, Andaluzia. O noivo e alguns convidados, contrariados porque a noiva não chegava, foram embora. Um deles encontrou, a alguns quilômetros do local da boda, o cadáver ensanguentado de um primo da noiva, Montes Cañada. Ao investigar o caso, a polícia encontrou a noiva, com as roupas ensanguentadas, escondida perto do local onde estava o cadáver. Presa, a noiva contou que estava fugindo com o primo, a cavalo, mas na fuga encontraram um homem encapuzado que disparou quatro disparos, matando Montes Cañada. O noivo também foi preso.
Três dias depois, o mesmo jornal circulou a notícia: “Se esclarece o mistério do crime da fazenda de Níjar”, no qual dizia que a detenta, Francisca Cañada Morales, submetida a intenso interrogatório, acusou o irmão do noivo, José Pérez Pino, como o autor do crime. Acareados ambos os irmãos, José confessou o crime, declarou que havia bebido demais e que encontrou os fugitivos no caminho. José disse que sentiu tanta vergonha pela ofensa que se inferia ao seu irmão que se lançou contra Montes Cañada com o revólver que usava e acabou disparando os tiros. Com isso, pode-se analisar Bodas de Sangue sendo uma obra nascida de um fato real, uma boda frustrada e que expressa costumes locais e uma sociedade que o escritor se preocupou em retratar como arcaica não apenas em Bodas, mas em outras duas peças: Yerma e Casa de Bernarda Alba. Acima da veracidade dos fatos, Bodas de Sangue é uma expressão dramática da Andaluzia de García Lorca, do sul rural da Espanha do início do século XX, que ainda nos anos de 1920, apresentava-se como uma das culturas mais antigas da Europa. Assim, na peça de Lorca pode-se notar a presença das tradições arcaicas no jugo da sociedade e sua ordem preestabelecida, no amor impossível, na frustração, no desejo, no destino que domina a vontade dos personagens entrelaçados na obra presidida pela cerimonia da boda e da morte.
Com relação à forma, em Bodas de Sangue Lorca consagrou o estilo que mistura prosa e poesia. Essa mescla sempre foi rejeitada por crítica e público, mas para o autor ela se tornou fundamental, pois “a prosa livre e dura pode alcançar altas hierarquias expressivas, permitindo-nos um desembaraço impossível de conseguir dentro do rigor métrico”, e sobre a poesia, “vinda em boa hora a poesia naqueles momentos que a disposição e o frenesi do tema o exijam. Mas nunca em outro momento”, segundo Lorca (apud MARTÍN, 1998, p. 193). Assim, Federico cria seu teatro com um estilo inconfundível: obras dramáticas com forte carpa poética e símbolos (como a lua, o sangue, o cavalo e o punhal), além da abundância de elementos tradicionais como a música e os cantos populares, que claramente foram usados para aprofundar o espírito o os costumes próprios dos habitantes do sul da Espanha, região na qual nasceu García Lorca, gente frequentemente caracterizada como apaixonada e valente, melancólica e vingativa. “[...] o teatro necessita que os personagens que aparecem em cena usem um traje de poesia e ao mesmo tempo que seja possível ver-lhes os ossos, o sangue. Tem que ser humanos, tão horrorosamente trágicos e ligados à vida, com tal força, que mostrem suas traições, que apreciem seus odores e que salte aos lábios toda a valentia de suas palavras cheias de amor ou de nojo”. (LORCA, 2008.v. VI, p. 730)
A preocupação com o popular-tradicional acabou se mostrando uma constante ao longo da vida e da obra lorquiana. Aliado a isso, nota-se a intenção de Lorca em criar um ambiente trágico na Andaluzia através do refinamento poético que circulava por Madri ao sul da Espanha. Mas não foi por meio do trágico clássico que o autor espanhol criou suas obras dramáticas, pois Lorca criou uma tragédia própria, a tragédia lorquiana, na qual seus personagens pertencem ao meio rural andaluz, ambiente que Federico conheceu muito bem. Filho de um importante fazendeiro de Granada, o próprio Lorca ressaltava a importância e a influência em sua obra do ambiente rural na qual se criou: “minhas mais antigas recordações de criança têm sabor de terra. Os bichos da terra, os animais, a gente campesina [...] eu as capto agora com o mesmo espírito dos meus anos infantis” (apud MARTÍN, 1998, p. 193). Entre a gente campesina estavam os ciganos; no ambiente de marginalização foi onde Lorca encontrou esse povo nômade que se fixou no sul da Espanha, que se seguiu sendo alvo de hostilidade e repressão, desde sua chegada durante o século XIV — tempo dos reis católicos Isabel de Castela e Fernando de Aragão — até as ditaduras de Primo de Rivera e do General Franco, no século XX. Não se pode ignorar a sensibilidade de Lorca e sua percepção da sociedade e suas relações, e essa capacidade do escritor de se solidarizar o aproximou de vários grupos de marginalizados, como, por exemplo, os ciganos da Andaluzia ou os negros de Nova Iorque. Lorca muitas vezes se posicionou, por meio de suas conferências, entrevistas e obras, ao lado daqueles que eram massacrados pelo poder e ordem vigentes. Em Romancero Gitano, o poeta expõe a violência da guarda civil contra os ciganos — o primeiro símbolo usado pelo autor para tratar daqueles que tinham sua liberdade cerceada por valores sociais, chegando ao embate físico. Já em Poeta em Nova York, em muitos poemas o escritor se coloca solidário aos negros, vítimas do racismo norte americano no início do século XX, enquanto que em Sonetos del amor Oscuro são os homossexuais que ganham, mais claramente, espaço na obra de Lorca. Em suas obras dramáticas, o escritor privilegia a mulher como eixo central, não apenas na sua trilogia rural, mas também em peças como Mariana Pineda; Doña Rosita, la Soltera ou La Zapatera Prodigiosa, que apresentam protagonistas femininas, personagens que se juntam aos ciganos, negros e homossexuais das obras poéticas por estarem circundadas aos papeis sociais marcados pela obediência, imposição da submissão, silêncio e falta de liberdade, vivendo sob a vigília constante dos olhos da sociedade (ALVES, 2011). “O que conduziu Federico até o mundo flamenco e até o mundo cigano não foi sua alegria, diurna ou noturna, mas seu desamparo. O que levou Federico à admiração, a celebração e a exaltação do cigano  não foi sua classe social, mas sua própria capacidade de infortúnio”. (GRANDE, 1992: p.94)
Ainda durante sua infância, foi através dos ciganos que Lorca conheceu e se apaixonou pela arte flamenca e compreendeu o mundo do flamenco como expressão de dor, morte, autenticidade e os sons negros pelo fato de ser andaluz, música, poeta e homossexual. Além da sensibilidade e proximidade que Lorca mantinha com as famílias de ciganos que viviam na Andaluzia, o interesse pelo cante primitivo andaluz — música que originou o flamenco — e as preocupações de Manuel de Falla, um de seus amigos e mestres de Federico, pela música cigana levaram Lorca a se aprofundar na cultura que envolve o flamenco, convertendo este no principal tema de alguns de seus livros como o Poema do Cante Jondo (1921) e Romanceiro Gitano (1928). O flamenco foi uma arte marginal até o século XX. Até a década de 1920, mesmo na Espanha, havia uma forte rejeição ao flamenco por parte do mundo de poder cultural, universidades e conservatórios, pois ele era entendido como uma arte da cultura marginal, dos pobres, dos ciganos da Andaluzia; houve um movimento de “antiflamenquismo”, quase uma cruzada em muitas camadas do poder cultural da época que durou do último terço do século XIX até 1922, ano do Concurso do Cante Jondo, realizado na cidade de Granada. Este concurso foi organizado por García Lorca junto com Manuel de Falla e se tornou um acontecimento que mudou completamente a história e o lugar do flamenco no mundo. Com o concurso, a hostilidade contra o flamenco começou a diminuir. Junto com o concurso, Lorca, que na época já contava com prestígio nas rodas de artistas e intelectuais da Espanha, dedicou-se ao esforço de reivindicação de uma arte a que conheceu com amor mais que erudição. A historiografia do flamenco frequentemente se refere ao quanto a arte deve à pena andaluza e a desventura cigana — é a história dos sofredores: perseguidos, humilhados e desconsolados (GRANDE, 1992). Assim, é um fato importante para a cultura flamenca, e andaluza, que em 1922, quando os homens que gozavam de prestígio na sociedade artística espanhola viravam as costas para o flamenco, Lorca tenha usado sua posição social para exaltar, e não rebaixar, a arte de sua Andaluzia. Para Lorca, a arte flamenca é como um “tesouro artístico de toda uma raça” (LORCA, 2002: p.146) Para o escritor, o flamenco não era somente um estilo musical, mas uma expressão artística e cultural.
Pedro Salinas, em seu ensaio sobre a literatura hispânica, relaciona a expressão andaluza com a adoração à morte celebrada nos ritos católicos, como as populares procissões da Semana Santa: “Lorca nasce em um país que levou séculos vivendo um tipo especial de cultura, a qual chamo de cultura da morte” (SALINAS, 1958: 395). Para Salinas, a tragédia Bodas de Sangue é o topo da celebração do sacrifício, enquanto Yerma — segunda tragédia escrita por Lorca — encena o tema da fecundidade. Assim, a trilogia representa a sobrevivência de um modo de vida muito mais natural e relacionado à terra, como dizia Lorca, se comparado com a racionalidade das obras dramáticas do século XX. Segundo essa análise, as obras de Federico constituiriam um tipo de criação que remete muito mais aos instintos do que às racionalidades, ou como nos coloca Ricardo Doménech em seu livro García Lorca y la tragédia española, os detalhes, temas e simbolismos lorquianos criariam uma identificação teatro-rito. E essa identificação é um sinal para compreender a grande importância que a dança adquire, não apenas como recurso cênico, mas como expressão, em Bodas de Sangue. A dança não teria apenas uma finalidade plástica ou musical, mas se relaciona ao próprio conteúdo dramático criado por Lorca. E esse conteúdo é flamenco. A dança seria um meio de chegar à fonte originária da vida, até o ponto de que a dançantes experimentam o sentimento de identificação com a divindade e em Bodas a dança carrega uma significação ritual impregnada pela ansiosa espera na frustração (CORREA, 1970: p.227).

3 Bodas de Sangue de Gades e Saura
O cantaor sevilhano Antonio Mairena escreveu, em 1963, que era possível “afirmar, sem medo de errar, que nem antes nem depois dele [Lorca] houve poeta que mais profundamente tenha captado o mundo e o espírito do flamenco” (GRANDE, 1992: p.124). Assim, da mesma maneira que Lorca usou o flamenco como elemento fundamental de sua obra, inúmeros artistas flamencos retomaram a obra de Federico para expressar suas penas. O flamenco, que sempre foi uma arte para expressar a dor, a morte, o amor que não pode se realizar, passou a se apoiar na obra de Lorca como meio de alcançar distintos mundos. Em 1981, o cineasta espanhol Carlos Saura (1931) lança seu filme da trilogia flamenca apresentando-o como “Bodas de Sangue de Federico García Lorca”. Porém, engana-se aquele que pensa em assistir ao Bodas de Saura procurando fielmente a obra escrita por Federico. O filme apresenta ao espectador o ballet de Antonio Gades, uma das mais importantes companhias de dança flamenca da Espanha desde sua formação, na década de 1970, até os dias de hoje. Em 1974, Antonio Gades criou seu ballet Crônicas do sucesso de “Bodas de Sangue”, baseado na obra
homônima de Lorca. Deste encontro de Gades com Saura nasce uma obra que reconhece que o flamenco como arte mundialmente conhecida como uma das identidades espanholas e patrimônio cultural da humanidade graças ao concurso organizado por Lorca e por Falla, em 1922, e graças à popularização da cultura flamenca e cigana por meio de importantes obras de Federico, pondo fim ao status do flamenco como arte marginal, como expressão dos ciganos da Andaluzia. E, indo mais além, criar um espetáculo de flamenco, baseado na obra de Lorca, remete a obra do escritor à sua origem: o sul da Espanha impulsionado por ações e reações passionais, não racionais e intelectualizadas.
Saura tinha apenas cinco anos quando estourou a Guerra Civil Espanhola, em 1936, e se tornou testemunha das imagens da guerra, pois o pai do cineasta participou do bando republicado. Saura foi criado dentro da cultura marginal de Huesca, norte da Espanha, em meio aos escombros culturais e a pobreza imposta como castigo à zona republicana, vencida pelo banco nacionalista na guerra de Espanha. Durante a adolescência o cineasta mostrou especial interesse pela fotografia e costumava captar imagens de celebrações populares, cenas familiares, viagens pela Espanha e, em especial, retratos do flamenco e do mundo cigano. “Algumas das fotografias são testemunho de uma época de penúrias e falta de liberdade, refiro-me principalmente às fotos que fiz entre os anos de 1954 e 1960... Nos anos cinquenta éramos poucos os que sentíamos curiosidade fotográfica pelo país governado por Franco com a colaboração de uma igreja inquisitorial e uma polícia bruta que velava pela moralidade-imoralidade dos costumes. Espanha era, nessa época, um país com traços medievais, fome e escuridão...” (SAURA, 2000). Nota-se não apenas um interesse de Saura pela arte flamenca, mas o conhecimento do cineasta pela essência dessa arte e sua consciência da importância cultural e sociopolítica desta para a Espanha. A trilogia de Saura — formada pelos filmes Bodas de Sangue (1981), Carmen (1983) e Amor Bruxo (1986) — é uma resposta aos filmes que formavam a chamada españoladas: gênero musical nacionalista, muito difundido ao longo da ditadura franquista, e que favoreceram a associação iconográfica da cultura e folclore andaluz com a Espanha de Franco. A trilogia de Saura se destaca como uma recuperação do flamenco e distinguindo esta arte das narrativas propagandistas representadas nas españoladas. A criação de Saura mostra a clara intenção de ir além dos filmes de dança convencionais, fomentando um realismo cinematográfico que faça com que o espectador questione as representações flamencas das españoladas. E é nessa preocupação que Saura demonstra com a função de sua arte que encontramos seu filme Bodas de Sangue. O filme de Saura começa com a preparação dos bailarinos e musicos da companhia de Gades no camarim, preparando-se para o ensaio, enquanto o próprio Antonio Gades fala sobre entrada na dança, e esse primeiro momento do filme faz com que alguns estudiosos o interpretem como um documentário. A ideia de uma obra que trata de uma filmagem de momentos reais, não-ficcionais, próprios dos documentários, pode se fortalecer com a fala de Gades, no início da segunda parte do filme, na qual o diretor da companhia de dança diz que fará um ensaio corrido, que aconteça o que acontecer ele não irá interromper. Nessa segunda parte, o filme mostra uma apresentação de flamenco criada pela companhia de ballet de Antonio Gades baseada em Bodas de Sangue de García Lorca. Os atores-bailarinos utilizam o ballet clássico e o flamenco para contar a história do amor proibido entre a Noiva, interpretada pela Cristina Hoyos, e seu amante Leonardo, interpretado por Antonio Gades. À delicadeza expressiva da dança acadêmica clássica, a companhia de Gades integra a fúria trágica do flamenco cigano e andaluz. E assim, na segunda parte do filme, justamente o momento em que é presentada a história de amor trágico, o texto de Lorca é completamente eliminado, não havendo falar, narrativas orais ou qualquer referência textual à obra original.
Assim, por meio do baile flamenco Saura recria a obra de Lorca usando como elemento central o flamenco de Gades. Se Lorca revitalizou a arte flamenca e a ela dedicou parte de suas obras, mesmo Bodas de Sangue não sendo uma peça teatral que se refere à arte andaluza usar esta arte torna o filme fortemente lorquiano. Lorca falou do flamenco não apenas por meio de sua arte, mas também em uma de suas conferências, como a nominada “Teoria e jogo do duende”, texto fundamental para aqueles que desejam entender a arte flamenca. No início da conferência, Lorca coloca que desejava “dar uma simples lição sobre o espírito oculto da dolorida Espanha” (LORCA, 2000, p.109), mostrando assim que considerava indissociável o flamenco da cultura de seu país e ambos e o flamenco de sua obra. O fato é que o amor e a morte são os temas centrais do flamenco e das obras poéticas e dramáticas de Lorca. Assim, entendendo o flamenco, essa importante expressão andaluza, como sendo trágica por si só — por sua relação com a morte e por ser uma arte que necessita do corpo e da relação do poeta-artista com o mundo da obra —, é essencial pensar que a tragédia de Lorca é uma tragédia flamenca, ou melhor, uma tragédia andaluza (ALVES, 2011).

4 Minorização de Bodas de Sangue
Saura cria uma obra baseada em Lorca, mas elimina justamente o que tornou o escritor espanhol mundialmente famosos: seu texto. A partir disso, pode-se pensar no conceito de Gilles Deleuze de minorização expressa em Um manifesto de menos, publicado em 1978. Deleuze pensa a possibilidade de minorizar, tornar menores obras de teatro, um processo executado por Carmelo Bene em algumas obras clássicas do teatro mundial. Maior e menor não designam características intrínsecas à obra, mas são operações, cirurgias às quais os textos são submetidos. O ator, dramaturgo, encenador e cineasta italiano Carmelo Bene procede, segundo Deleuze, por subtração, ou seja, eliminando algo da peça originária. De Romeu e Julieta de Shakespeare, por exemplo, Bene subtrai Romeu criando uma nova Romeu e Julieta, e a partir desse processo é possível ver o surpreendente crescimento de Mercúrio, personagem que é apenas uma virtualidade na pela de Shakespeare. Outra peça de Shakespeare sobre a qual Bene trabalha na subtração é Ricardo III. Nesta, o dramaturgo italiano subtrai todos os personagens masculinos, a exceção de Ricardo III que passa a atuar apenas com as mulheres da peça. Assim, no teatro crítico de Bene, o que é amputado ou neutralizado são os elementos de poder, os elementos que fazem ou representam um sistema de poder. Quando Bene escolhe amputar os elementos de poder, não é apenas a matéria teatral que ele muda, mas também a forma do teatro que cessa de ser “representação”, ao mesmo tempo em que o ator cessa de ser ator. Ou seja, ao subtrair elementos de poder vem à tona, faz aparecer algo diferente que sempre esteve presente na obra original, mas que permanecia à sombra.
O processo de criação de Saura em Bodas de Sangue segue algo semelhante à minorização de Deleuze, pois o cineasta amputa partes da obra original de Lorca. Em Bodas de Saura são amputados personagens, cenas e o que chama maios atenção: são subtraídos todos os diálogos criados pelo escritor espanhol. Assim, o filme Bodas de Sangue parte de uma peça dramática, de linguagem poética, para um filme que utiliza a dança como instrumento narrativo e abre espaço para debater a língua, a narrativa textual, como um estado de poder, um marcador de poder. O estilo de dramaturgia lorquiana, que mescla prosa e poesia, também faz uso de orações ouvidas ou inventadas por Lorca para transmitir a ideia – ou a sensação – de que a língua falada neste universo dramático é depositária de uma experiência e de um saber ancestral. São frases curtas e sentenciosas, repetidas de forma tão marcada que nos remetem a refrões musicais. Alguns estudiosos analisaram o protagonismo da linguagem na obra de Lorca e o uso de sua antítese: o silêncio. Pela palavra transita um misto de pavor e desejo frente à presença e ao poder das palavras, e como colocou Fernández Cifuentes em García Lorca en el teatro: La norma y la diferencia, o calar e o silêncio vêm a ser a outra comprovação que nos ajuda a distinguir o contraste entre alguns personagens e suas relações de poder: a mãe do noivo e o pai da noiva são, sem dúvida, o que têm mais espaço para falar, o que nos apresenta a relação hierárquica e os costumes sociais. Bodas de Sangue não é um filme sobre flamenco, mas um filme que utiliza o flamenco para contar uma história. Ao invés de preparar um roteiro específico, Saura decidiu usar o ballet de Antonio Gardes — que por sua vez se baseou na tragédia homônima do poeta García Lorca —, e apresentou o filme a partir da filmagem de um ensaio de dança. No ballet é contada a história do triangulo amoroso de final trágico que troca uma boda por uma união de morte, no filme são expostas lado a lado poderosas tradições musicais e poéticas, tornando a obra de Saura fundamental para compreender melhor a cultura espanhola contemporânea por fazer vir à luz a essência da obra de Federico García Lorca mostrando-nos a antiga Espanha. Saura amputa de Bodas de Sangue original justamente aquilo oque tornou Lorca famoso e imortal: seu texto. É importante ter em mente que Lorca foi além de um escritor, foi um artista, e Saura, ao amputa as palavras de Lorca, encontra um outro meio de expressar a criação lorquiana. O ballet sem palavras é a essência da obra de García Lorca, uma obra trágica criada a partir da observação de seu meio, de sua gente, o povo da Andaluzia; a linguagem textual é traduzida por uma nova linguagem de movimento, gestos e olhares. Ou seja, Gades e Saura selecionam os signos lorquiano que podem expressar, por meio do flamenco, as emoções do texto original. O flamenco, que nasce como a expressão de dor dos marginalizados, faz emergir da obra de Lorca uma tragédia corporal expressa através do baile, ritmos e silêncios do flamenco, esvaziando o poder significante lorquiano, a palavra, convertendo Bodas de Sangue em um texto estéticamente novo.
E ao amputar o texto, o poder significante de Lorca, o que sobra? Segundo Deleuze, sobra tudo. No filme de Saura, por meio do baile ritual amoroso e os ritmos do flamenco esvazia-se o poder significante lorquiano ― que está justamente na linguagem textual ― mas ao invés de não sobrar nada, a obra se converte em uma linguagem esteticamente nova e muito lorquiana. Saura conseguiu abandonar todo o tipo de estrutura narrativa convencional com o objeto de liberar a expressão autêntica do baile e da música, e três fundamentos do gênero andaluz constroem a narrativa do filme: o jogo de guitarras, os movimentos da dança e o ressonar das vozes profundas flamencas. Ao amputar o texto, que é uma matéria de poder, o filme deixa de ser uma representação, não há atores em cena, mas bailarinos que também cessam de ser bailarinos ― a subtração dos elementos de poder libera potencialidades e novas formas de fazer emergir o centro da história que Lorca quer contar.

Conclusão
Bodas de sangue não pode ser considerado como teatro filmado, pois as variações cinematográficas que não são as mesmas do teatro: as câmeras não são fixas, não fazem um simples registro do ensaio da companhia de Gades, mas apresentam um jogo de câmeras que, mesmo filmando um ensaio, direcionam o olhar do espectador para o que o Saura quer tornar visível. Além disso, Bodas não é um filme sobre flamenco, o diretor não focaliza o virtuosismo dos bailaores, mas todo o conjunto de ballet flamenco, a dramaticidade do baile, a atuação dos bailaores. Assim, por meio do flamenco, e subtraindo o texto de Lorca, Saura cria uma obra essencialmente lorquiana. Com o processo de minorização pensado por Deleuze, Saura traz à cena elementos da obra de Lorca que ficariam obscurecidos com os elementos de poder, como a linguagem textual ou personagens que por meio de seus simbolismos lorquianos — como o personagem da Mendiga, que para muitos estudiosos simbolisa a morte, ou elementos que caratcterizaram a obra lorquiana como a Lua ou o coro, que em Bodas é representado pelos Lenhadores — e sociais, como o Pai da Noiva, personagem que centraliza muitos diálogos e cenas da peça. Assim, com a subtração de elementos de poder e com o uso do flamenco como elemento narrativo, Saura coloca em evidência o que realmente importa: o triangulo amoroso que caminha para sua tragédia quando abre mão dos códigos e normas sociais, como as bodas organizadas pelos pais, e dá vazão ao desejo entre os dois amantes; a estória da vingança do Noivo que se sente desonrado e que aceita a morte honrada à vida vergonhosa de ter sido abandonado.
O flamenco, elemento fundamental do espírito lorquiano, é usado para recriar a obra original lorquiana com seus elementos mais importantes. Assim, a minorização, pensada por Deleuze nos mostra o que de fato importa e que segue viva na peça teatral, no flamenco de Gades ou no filme de Saura. As Bodas de Sangue tanto as de Lorca quanto as de Saura nos apresentam, por meios distintos, a trágica história amor que busca pela liberdade para se realizar, mas que segue em direção à morte.

Referências Bibliográficas
1. ALVES, Syntia – O teatro de García Lorca: a arte que se levanta da vida. Tese de
doutorado – PUC-SP, 2011.
2. CORREA, Gustavo - La poesía mítica de Federico García Lorca, Madrid, Gredos, 1970.
3. DOMÉNECH, Ricardo - Garcia Lorca e a tragedia española. Madrid, Ed. Fundamientos,
2008.
4. GARCÍA LORCA, Federico - Bodas de sangue. São Paulo, Ed. Peixoto Neto, 2004
Obras Completas. Madrid, Ediciones Akal, 2008.
Obras Poéticas Completas. São Paulo, Martins Fontes, 2002.
5. GRANDE, Felix – García Lorca y el flamenco. Madrid, Mondadori España, 1992.
6. MARTÍN, Eutimio. Federico García Lorca – Antología Comentada. Madrid, Ediciones de
la Torre, 1988.
7. SALINAS, Pedro - Ensayos de literature hispánica. Madrid: Aguilar, 1958.
8. Saura, Carlos. Pueblos y gentes de España: fotografías de los años cincuenta y sesenta, [online]. Madrid: Instituto Cervantes, marzo 2000. URL: <
http://cvc.cervantes.es/artes/fotografia/saura/saura.htm>. [Consulta: 9 de marzo de 2010].