A seguir, artigo que propõe uma análise comparativa entre a peça Bodas de Sangue, de Federico García Lorca, com o filme homônimo de Carlos Saura. A análise visa comparar a recriação da obra de Lorca por Saura a partir do conceito de Gilles Deleuze de “teatro menor”, entendendo que o cineasta não faz uma versão fílmica da peça de Lorca, mas sim um ensaio crítico operado pela subtração para a constituição. Carlos Saura usa o cinema e o flamenco para criar Bodas de Sangue que, ao mesmo tempo em que não é uma recriação da peça de Lorca — pois subtrai elementos fundamentais da obra original, como as falas da peça — apresenta-se fundamentalmente como uma obra lorquiana por meio do uso do flamenco.
As Bodas de Sangue de García Lorca e Carlos Saura
1 Introdução
Federico García Lorca foi músico, poeta, dramaturgo
e desenhista. Mais do que um escritor, Lorca transitou por distintas
manifestações artísticas, musicando poemas, poetizando o teatro e construindo
obras de arte que não podem ser catalogadas em apenas um gênero artístico.
Oriundo da região da Andaluzia, Lorca foi influenciado pelo multifacetário sul
da Espanha e sua cultura de origem árabe, cigana e católica, criando uma arte
repleta de poesia e música, luz e sombra. Das obras dramáticas de Lorca, três
delas contam com maior êxito mundial, compondo a “trilogia rural” lorquiana, e
a obra que inicia a trilogia é Bodas de Sangue (1928), considerada a primeira
peça trágica do escritor. Assim, a proposta deste trabalho é apresentar uma
análise comparativa entre a peça de García Lorca e o filme homônimo de Carlos
Saura (1981). A presente análise visa comparar a recriação da obra de Lorca por
Saura a partir do conceito de Gilles Deleuze de “teatro menor”, entendendo que
o cineasta não faz uma versão fílmica da peça de Lorca, mas sim um ensaio
crítico operado pela subtração para a constituição. Deleuze coloca que é a partir
do processo de amputação que se faz nascer algo de inesperado.
Para tanto, na primeira parte do texto procura-se
pensar no processo de criação de Lorca a partir de um elemento fundamental da
cultura andaluza: o flamenco. Essa arte oriunda do sul da Espanha não é somente
uma música ou um baile, mas a expressão dos ciganos, um povo marginalizado que
por séculos chorou suas penas nas noites regadas à vinho, música e dança. Com isso,
a presente análise visa apresentar como Carlos Saura usa o cinema e o flamenco
para criar Bodas de Sangue que, ao mesmo tempo em que não é uma recriação da
peça de Lorca — pois subtrai elementos fundamentais da obra original, como as
falas da peça — apresenta-se fundamentalmente como uma obra lorquiana por meio
do uso do flamenco. A matéria-prima fundamental do flamenco é o mundo das
paixões e com isso esta manifestação artística espanhola é uma interessante
ferramenta com a qual Saura expressar o não dito em seu filme. E a partir desta
análise é possível identificar e comparar como o Lorca, escritor, usa a poesia
e a prosa como elemento fundamental para a criação de seu teatro, e como Saura
usa a dança flamenca como meio de expressão em seu cinema.
2 Bodas de Sangue de Lorca e o
flamenco
Federico García Lorca falou certa vez sobre seu
método de criação:
“figuras reais, tema
rigorosamente autêntico... primeiro, anotações, observações tomadas da vida
mesmo, do jornal às vezes... depois, um pensar em torno do assunto. Um longo
pensar, constante. E, por último, o translado definitivo da cabeça para a cena”
(apud MARTÍN, 1998, p: 192).
Tal afirmação de Lorca levou muitos estudiosos a
relacionar Bodas de Sangue, peça escrita entre 1928 e 1933, a um assassinato
ocorrido no ano de 1928, e que foi amplamente divulgado pela imprensa
espanhola.
No jornal ABC, em 24 de agosto de 1928, circulou a
manchete “Crime desenrolado em circunstâncias misteriosas”. O fato referia-se a
um casamento em Almería, Andaluzia. O noivo e alguns convidados, contrariados
porque a noiva não chegava, foram embora. Um deles encontrou, a alguns
quilômetros do local da boda, o cadáver ensanguentado de um primo da noiva,
Montes Cañada. Ao investigar o caso, a polícia encontrou a noiva, com as roupas
ensanguentadas, escondida perto do local onde estava o cadáver. Presa, a noiva contou
que estava fugindo com o primo, a cavalo, mas na fuga encontraram um homem
encapuzado que disparou quatro disparos, matando Montes Cañada. O noivo também
foi preso.
Três dias depois, o mesmo jornal circulou a
notícia: “Se esclarece o mistério do crime da fazenda de Níjar”, no qual dizia
que a detenta, Francisca Cañada Morales, submetida a intenso interrogatório,
acusou o irmão do noivo, José Pérez Pino, como o autor do crime. Acareados
ambos os irmãos, José confessou o crime, declarou que havia bebido demais e que
encontrou os fugitivos no caminho. José disse que sentiu tanta vergonha pela
ofensa que se inferia ao seu irmão que se lançou contra Montes Cañada com o
revólver que usava e acabou disparando os tiros. Com isso, pode-se analisar
Bodas de Sangue sendo uma obra nascida de um fato real, uma boda frustrada e que
expressa costumes locais e uma sociedade que o escritor se preocupou em retratar
como arcaica não apenas em Bodas, mas em outras duas peças: Yerma e Casa de
Bernarda Alba. Acima da veracidade dos fatos, Bodas de Sangue é uma expressão
dramática da Andaluzia de García Lorca, do sul rural da Espanha do início do
século XX, que ainda nos anos de 1920, apresentava-se como uma das culturas
mais antigas da Europa. Assim, na peça de Lorca pode-se notar a presença das
tradições arcaicas no jugo da sociedade e sua ordem preestabelecida, no amor impossível,
na frustração, no desejo, no destino que domina a vontade dos personagens
entrelaçados na obra presidida pela cerimonia da boda e da morte.
Com relação à forma, em Bodas de Sangue Lorca
consagrou o estilo que mistura prosa e poesia. Essa mescla sempre foi rejeitada
por crítica e público, mas para o autor ela se tornou fundamental, pois “a
prosa livre e dura pode alcançar altas hierarquias expressivas, permitindo-nos um
desembaraço impossível de conseguir dentro do rigor métrico”, e sobre a poesia,
“vinda em boa hora a poesia naqueles momentos que a disposição e o frenesi do
tema o exijam. Mas nunca em outro momento”, segundo Lorca (apud MARTÍN, 1998,
p. 193). Assim, Federico cria seu teatro com um estilo inconfundível: obras
dramáticas com forte carpa poética e símbolos (como a lua, o sangue, o cavalo e
o punhal), além da abundância de elementos tradicionais como a música e os cantos
populares, que claramente foram usados para aprofundar o espírito o os costumes
próprios dos habitantes do sul da Espanha, região na qual nasceu García Lorca,
gente frequentemente caracterizada como apaixonada e valente, melancólica e
vingativa. “[...] o teatro necessita que os personagens que aparecem em cena
usem um traje de poesia e ao mesmo tempo que seja possível ver-lhes os ossos, o
sangue. Tem que ser humanos, tão horrorosamente trágicos e ligados à vida, com
tal força, que mostrem suas traições, que apreciem seus odores e que salte aos
lábios toda a valentia de suas palavras cheias de amor ou de nojo”. (LORCA, 2008.v.
VI, p. 730)
A preocupação com o popular-tradicional acabou se
mostrando uma constante ao longo da vida e da obra lorquiana. Aliado a isso,
nota-se a intenção de Lorca em criar um ambiente trágico na Andaluzia através
do refinamento poético que circulava por Madri ao sul da Espanha. Mas não foi por
meio do trágico clássico que o autor espanhol criou suas obras dramáticas, pois
Lorca criou uma tragédia própria, a tragédia lorquiana, na qual seus
personagens pertencem ao meio rural andaluz, ambiente que Federico conheceu
muito bem. Filho de um importante fazendeiro de Granada, o próprio Lorca
ressaltava a importância e a influência em sua obra do ambiente rural na qual
se criou: “minhas mais antigas recordações de criança têm sabor de terra. Os
bichos da terra, os animais, a gente campesina [...] eu as capto agora com o
mesmo espírito dos meus anos infantis” (apud MARTÍN, 1998, p. 193). Entre a
gente campesina estavam os ciganos; no ambiente de marginalização foi onde
Lorca encontrou esse povo nômade que se fixou no sul da Espanha, que se seguiu
sendo alvo de hostilidade e repressão, desde sua chegada durante o século XIV —
tempo dos reis católicos Isabel de Castela e Fernando de Aragão — até as
ditaduras de Primo de Rivera e do General Franco, no século XX. Não se pode
ignorar a sensibilidade de Lorca e sua percepção da sociedade e suas relações,
e essa capacidade do escritor de se solidarizar o aproximou de vários grupos de
marginalizados, como, por exemplo, os ciganos da Andaluzia ou os negros de Nova
Iorque. Lorca muitas vezes se posicionou, por meio de suas conferências,
entrevistas e obras, ao lado daqueles que eram massacrados pelo poder e ordem
vigentes. Em Romancero Gitano, o poeta expõe a violência da guarda civil
contra os ciganos — o primeiro símbolo usado pelo autor para tratar daqueles
que tinham sua liberdade cerceada por valores sociais, chegando ao embate
físico. Já em Poeta em Nova York, em muitos poemas o escritor se coloca
solidário aos negros, vítimas do racismo norte americano no início do
século XX, enquanto que em Sonetos del amor Oscuro são os homossexuais que
ganham, mais claramente, espaço na obra de Lorca. Em suas obras dramáticas, o
escritor privilegia a mulher como eixo central, não apenas na sua trilogia
rural, mas também em peças como Mariana Pineda; Doña Rosita, la
Soltera ou La Zapatera Prodigiosa, que apresentam protagonistas femininas,
personagens que se juntam aos ciganos, negros e homossexuais das obras poéticas
por estarem circundadas aos papeis sociais marcados pela obediência, imposição
da submissão, silêncio e falta de liberdade, vivendo sob a vigília constante
dos olhos da sociedade (ALVES, 2011). “O que conduziu Federico até o mundo
flamenco e até o mundo cigano não foi sua alegria, diurna ou noturna, mas seu
desamparo. O que levou Federico à admiração, a celebração e a exaltação do
cigano não foi sua classe social, mas sua
própria capacidade de infortúnio”. (GRANDE, 1992: p.94)
Ainda durante sua infância, foi através dos ciganos
que Lorca conheceu e se apaixonou pela arte flamenca e compreendeu o mundo do
flamenco como expressão de dor, morte, autenticidade e os sons negros pelo fato
de ser andaluz, música, poeta e homossexual. Além da sensibilidade e proximidade
que Lorca mantinha com as famílias de ciganos que viviam na Andaluzia, o
interesse pelo cante primitivo andaluz — música que originou o flamenco — e as
preocupações de Manuel de Falla, um de seus amigos e mestres de Federico, pela
música cigana levaram Lorca a se aprofundar na cultura que envolve o flamenco,
convertendo este no principal tema de alguns de seus livros como o Poema do
Cante Jondo (1921) e Romanceiro Gitano (1928). O flamenco foi uma
arte marginal até o século XX. Até a década de 1920, mesmo na Espanha, havia
uma forte rejeição ao flamenco por parte do mundo de poder cultural,
universidades e conservatórios, pois ele era entendido como uma arte da cultura
marginal, dos pobres, dos ciganos da Andaluzia; houve um movimento de
“antiflamenquismo”, quase uma cruzada em muitas camadas do poder cultural da
época que durou do último terço do século XIX até 1922, ano do Concurso do
Cante Jondo, realizado na cidade de Granada. Este concurso foi organizado por
García Lorca junto com Manuel de Falla e se tornou um acontecimento que mudou
completamente a história e o lugar do flamenco no mundo. Com o concurso, a hostilidade
contra o flamenco começou a diminuir. Junto com o concurso, Lorca, que na época
já contava com prestígio nas rodas de artistas e intelectuais da Espanha,
dedicou-se ao esforço de reivindicação de uma arte a que conheceu com amor mais
que erudição. A historiografia do flamenco frequentemente se refere ao quanto a
arte deve à pena andaluza e a desventura cigana — é a história dos sofredores: perseguidos,
humilhados e desconsolados (GRANDE, 1992). Assim, é um fato importante para a cultura
flamenca, e andaluza, que em 1922, quando os homens que gozavam de prestígio na
sociedade artística espanhola viravam as costas para o flamenco, Lorca tenha
usado sua posição social para exaltar, e não rebaixar, a arte de sua Andaluzia.
Para Lorca, a arte flamenca é como um “tesouro artístico de toda uma raça”
(LORCA, 2002: p.146) Para o escritor, o flamenco não era somente um estilo
musical, mas uma expressão artística e cultural.
Pedro Salinas, em seu ensaio sobre a literatura
hispânica, relaciona a expressão andaluza com a adoração à morte celebrada nos
ritos católicos, como as populares procissões da Semana Santa: “Lorca nasce em
um país que levou séculos vivendo um tipo especial de cultura, a qual chamo de
cultura da morte” (SALINAS, 1958: 395). Para Salinas, a tragédia Bodas de
Sangue é o topo da celebração do sacrifício, enquanto Yerma — segunda tragédia
escrita por Lorca — encena o tema da fecundidade. Assim, a trilogia representa
a sobrevivência de um modo de vida muito mais natural e relacionado à terra,
como dizia Lorca, se comparado com a racionalidade das obras dramáticas do
século XX. Segundo essa análise, as obras de Federico constituiriam um tipo de criação
que remete muito mais aos instintos do que às racionalidades, ou como nos
coloca Ricardo Doménech em seu livro García Lorca y la tragédia española,
os detalhes, temas e simbolismos lorquianos criariam uma identificação
teatro-rito. E essa identificação é um sinal para compreender a grande
importância que a dança adquire, não apenas como recurso cênico, mas como
expressão, em Bodas de Sangue. A dança não teria apenas uma finalidade
plástica ou musical, mas se relaciona ao próprio conteúdo dramático criado por
Lorca. E esse conteúdo é flamenco. A dança seria um meio de chegar à fonte
originária da vida, até o ponto de que a dançantes experimentam o sentimento de
identificação com a divindade e em Bodas a dança carrega uma significação
ritual impregnada pela ansiosa espera na frustração (CORREA, 1970: p.227).
3 Bodas de Sangue de Gades e
Saura
O cantaor sevilhano Antonio Mairena escreveu, em
1963, que era possível “afirmar, sem medo de errar, que nem antes nem depois
dele [Lorca] houve poeta que mais profundamente tenha captado o mundo e o
espírito do flamenco” (GRANDE, 1992: p.124). Assim, da mesma maneira que Lorca
usou o flamenco como elemento fundamental de sua obra, inúmeros artistas
flamencos retomaram a obra de Federico para expressar suas penas. O flamenco,
que sempre foi uma arte para expressar a dor, a morte, o amor que não pode se
realizar, passou a se apoiar na obra de Lorca como meio de alcançar distintos
mundos. Em 1981, o cineasta espanhol Carlos Saura (1931) lança seu filme da
trilogia flamenca apresentando-o como “Bodas de Sangue de Federico García Lorca”.
Porém, engana-se aquele que pensa em assistir ao Bodas de Saura procurando
fielmente a obra escrita por Federico. O filme apresenta ao espectador o ballet
de Antonio Gades, uma das mais importantes companhias de dança flamenca da
Espanha desde sua formação, na década de 1970, até os dias de hoje. Em 1974, Antonio
Gades criou seu ballet Crônicas do sucesso de “Bodas de Sangue”, baseado na
obra
homônima de Lorca. Deste encontro de Gades com
Saura nasce uma obra que reconhece que o flamenco como arte mundialmente
conhecida como uma das identidades espanholas e patrimônio cultural da
humanidade graças ao concurso organizado por Lorca e por Falla, em 1922, e
graças à popularização da cultura flamenca e cigana por meio de importantes
obras de Federico, pondo fim ao status do flamenco como arte marginal, como
expressão dos ciganos da Andaluzia. E, indo mais além, criar um espetáculo de
flamenco, baseado na obra de Lorca, remete a obra do escritor à sua origem: o
sul da Espanha impulsionado por ações e reações passionais, não racionais e intelectualizadas.
Saura tinha apenas cinco anos quando estourou a
Guerra Civil Espanhola, em 1936, e se tornou testemunha das imagens da guerra,
pois o pai do cineasta participou do bando republicado. Saura foi criado dentro
da cultura marginal de Huesca, norte da Espanha, em meio aos escombros culturais
e a pobreza imposta como castigo à zona republicana, vencida pelo banco
nacionalista na guerra de Espanha. Durante a adolescência o cineasta mostrou
especial interesse pela fotografia e costumava captar imagens de celebrações
populares, cenas familiares, viagens pela Espanha e, em especial, retratos do
flamenco e do mundo cigano. “Algumas das fotografias são testemunho de uma
época de penúrias e falta de liberdade, refiro-me principalmente às fotos que
fiz entre os anos de 1954 e 1960... Nos anos cinquenta éramos poucos os que
sentíamos curiosidade fotográfica pelo país governado por Franco com a
colaboração de uma igreja inquisitorial e uma polícia bruta que velava pela
moralidade-imoralidade dos costumes. Espanha era, nessa época, um país com
traços medievais, fome e escuridão...” (SAURA, 2000). Nota-se não apenas um
interesse de Saura pela arte flamenca, mas o conhecimento do cineasta pela
essência dessa arte e sua consciência da importância cultural e sociopolítica
desta para a Espanha. A trilogia de Saura — formada pelos filmes Bodas de
Sangue (1981), Carmen (1983) e Amor Bruxo (1986) — é uma resposta aos filmes
que formavam a chamada españoladas: gênero musical nacionalista, muito
difundido ao longo da ditadura franquista, e que favoreceram a associação
iconográfica da cultura e folclore andaluz com a Espanha de Franco. A trilogia
de Saura se destaca como uma recuperação do flamenco e distinguindo esta arte
das narrativas propagandistas representadas nas españoladas. A criação de Saura
mostra a clara intenção de ir além dos filmes de dança convencionais,
fomentando um realismo cinematográfico que faça com que o espectador questione
as representações flamencas das españoladas. E é nessa preocupação que Saura
demonstra com a função de sua arte que encontramos seu filme Bodas de Sangue. O
filme de Saura começa com a preparação dos bailarinos e musicos da companhia de
Gades no camarim, preparando-se para o ensaio, enquanto o próprio Antonio Gades
fala sobre entrada na dança, e esse primeiro momento do filme faz com que alguns
estudiosos o interpretem como um documentário. A ideia de uma obra que trata de
uma filmagem de momentos reais, não-ficcionais, próprios dos documentários,
pode se fortalecer com a fala de Gades, no início da segunda parte do filme, na
qual o diretor da companhia de dança diz que fará um ensaio corrido, que
aconteça o que acontecer ele não irá interromper. Nessa segunda parte, o filme
mostra uma apresentação de flamenco criada pela companhia de ballet de Antonio
Gades baseada em Bodas de Sangue de García Lorca. Os atores-bailarinos
utilizam o ballet clássico e o flamenco para contar a história do amor proibido
entre a Noiva, interpretada pela Cristina Hoyos, e seu amante Leonardo, interpretado
por Antonio Gades. À delicadeza expressiva da dança acadêmica clássica, a
companhia de Gades integra a fúria trágica do flamenco cigano e andaluz. E assim,
na segunda parte do filme, justamente o momento em que é presentada a história
de amor trágico, o texto de Lorca é completamente eliminado, não havendo falar,
narrativas orais ou qualquer referência textual à obra original.
Assim, por meio do baile flamenco Saura recria a
obra de Lorca usando como elemento central o flamenco de Gades. Se Lorca revitalizou
a arte flamenca e a ela dedicou parte de suas obras, mesmo Bodas de Sangue não
sendo uma peça teatral que se refere à arte andaluza usar esta arte torna o
filme fortemente lorquiano. Lorca falou do flamenco não apenas por meio de sua
arte, mas também em uma de suas conferências, como a nominada “Teoria e jogo do
duende”, texto fundamental para aqueles que desejam entender a arte flamenca.
No início da conferência, Lorca coloca que desejava “dar uma simples lição
sobre o espírito oculto da dolorida Espanha” (LORCA, 2000, p.109), mostrando
assim que considerava indissociável o flamenco da cultura de seu país e ambos e
o flamenco de sua obra. O fato é que o amor e a morte são os temas centrais do
flamenco e das obras poéticas e dramáticas de Lorca. Assim, entendendo o
flamenco, essa importante expressão andaluza, como sendo trágica por si só —
por sua relação com a morte e por ser uma arte que necessita do corpo e da
relação do poeta-artista com o mundo da obra —, é essencial pensar que a tragédia
de Lorca é uma tragédia flamenca, ou melhor, uma tragédia andaluza (ALVES,
2011).
4 Minorização de Bodas de Sangue
Saura cria uma obra baseada em Lorca, mas elimina
justamente o que tornou o escritor espanhol mundialmente famosos: seu texto. A
partir disso, pode-se pensar no conceito de Gilles Deleuze de minorização
expressa em Um manifesto de menos, publicado em 1978. Deleuze pensa a possibilidade
de minorizar, tornar menores obras de teatro, um processo executado por Carmelo
Bene em algumas obras clássicas do teatro mundial. Maior e menor não designam
características intrínsecas à obra, mas são operações, cirurgias às quais os
textos são submetidos. O ator, dramaturgo, encenador e cineasta italiano
Carmelo Bene procede, segundo Deleuze, por subtração, ou seja, eliminando algo
da peça originária. De Romeu e Julieta de Shakespeare, por exemplo, Bene
subtrai Romeu criando uma nova Romeu e Julieta, e a partir desse
processo é possível ver o surpreendente crescimento de Mercúrio, personagem que
é apenas uma virtualidade na pela de Shakespeare. Outra peça de Shakespeare
sobre a qual Bene trabalha na subtração é Ricardo III. Nesta, o
dramaturgo italiano subtrai todos os personagens masculinos, a exceção de Ricardo
III que passa a atuar apenas com as mulheres da peça. Assim, no teatro crítico
de Bene, o que é amputado ou neutralizado são os elementos de poder, os elementos
que fazem ou representam um sistema de poder. Quando Bene escolhe amputar os
elementos de poder, não é apenas a matéria teatral que ele muda, mas também a
forma do teatro que cessa de ser “representação”, ao mesmo tempo em que o ator
cessa de ser ator. Ou seja, ao subtrair elementos de poder vem à tona, faz aparecer
algo diferente que sempre esteve presente na obra original, mas que permanecia
à sombra.
O processo de criação de Saura em Bodas de Sangue
segue algo semelhante à minorização de Deleuze, pois o cineasta amputa partes
da obra original de Lorca. Em Bodas de Saura são amputados personagens, cenas e
o que chama maios atenção: são subtraídos todos os diálogos criados pelo
escritor espanhol. Assim, o filme Bodas de Sangue parte de uma peça dramática,
de linguagem poética, para um filme que utiliza a dança como instrumento
narrativo e abre espaço para debater a língua, a narrativa textual, como um
estado de poder, um marcador de poder. O estilo de dramaturgia lorquiana, que
mescla prosa e poesia, também faz uso de orações ouvidas ou inventadas por
Lorca para transmitir a ideia – ou a sensação – de que a língua falada neste
universo dramático é depositária de uma experiência e de um saber ancestral.
São frases curtas e sentenciosas, repetidas de forma tão marcada que nos remetem
a refrões musicais. Alguns estudiosos analisaram o protagonismo da linguagem na
obra de Lorca e o uso de sua antítese: o silêncio. Pela palavra transita um
misto de pavor e desejo frente à presença e ao poder das palavras, e como
colocou Fernández Cifuentes em García Lorca en el teatro: La norma y la
diferencia, o calar e o silêncio vêm a ser a outra comprovação que nos
ajuda a distinguir o contraste entre alguns personagens e suas relações de poder:
a mãe do noivo e o pai da noiva são, sem dúvida, o que têm mais espaço para
falar, o que nos apresenta a relação hierárquica e os costumes sociais. Bodas
de Sangue não é um filme sobre flamenco, mas um filme que utiliza o flamenco
para contar uma história. Ao invés de preparar um roteiro específico, Saura
decidiu usar o ballet de Antonio Gardes — que por sua vez se baseou na tragédia
homônima do poeta García Lorca —, e apresentou o filme a partir da filmagem de
um ensaio de dança. No ballet é contada a história do triangulo amoroso de
final trágico que troca uma boda por uma união de morte, no filme são expostas
lado a lado poderosas tradições musicais e poéticas, tornando a obra de Saura
fundamental para compreender melhor a cultura espanhola contemporânea por fazer
vir à luz a essência da obra de Federico García Lorca mostrando-nos a antiga
Espanha. Saura amputa de Bodas de Sangue original justamente aquilo oque tornou
Lorca famoso e imortal: seu texto. É importante ter em mente que Lorca foi além
de um escritor, foi um artista, e Saura, ao amputa as palavras de Lorca,
encontra um outro meio de expressar a criação lorquiana. O ballet sem palavras
é a essência da obra de García Lorca, uma obra trágica criada a partir da observação
de seu meio, de sua gente, o povo da Andaluzia; a linguagem textual é traduzida
por uma nova linguagem de movimento, gestos e olhares. Ou seja, Gades e Saura
selecionam os signos lorquiano que podem expressar, por meio do flamenco, as
emoções do texto original. O flamenco, que nasce como a expressão de dor dos
marginalizados, faz emergir da obra de Lorca uma tragédia corporal expressa
através do baile, ritmos e silêncios do flamenco, esvaziando o poder
significante lorquiano, a palavra, convertendo Bodas de Sangue em um texto
estéticamente novo.
E ao amputar o texto, o poder significante de
Lorca, o que sobra? Segundo Deleuze, sobra tudo. No filme de Saura, por meio do
baile ritual amoroso e os ritmos do flamenco esvazia-se o poder significante
lorquiano ― que está justamente na linguagem textual ― mas ao invés de não sobrar
nada, a obra se converte em uma linguagem esteticamente nova e muito lorquiana.
Saura conseguiu abandonar todo o tipo de estrutura narrativa convencional com o
objeto de liberar a expressão autêntica do baile e da música, e três fundamentos
do gênero andaluz constroem a narrativa do filme: o jogo de guitarras, os movimentos
da dança e o ressonar das vozes profundas flamencas. Ao amputar o texto, que é
uma matéria de poder, o filme deixa de ser uma representação, não há atores em
cena, mas bailarinos que também cessam de ser bailarinos ― a subtração dos
elementos de poder libera potencialidades e novas formas de fazer emergir o
centro da história que Lorca quer contar.
Conclusão
Bodas de sangue não pode ser considerado como teatro
filmado, pois as variações cinematográficas que não são as mesmas do teatro: as
câmeras não são fixas, não fazem um simples registro do ensaio da companhia de
Gades, mas apresentam um jogo de câmeras que, mesmo filmando um ensaio,
direcionam o olhar do espectador para o que o Saura quer tornar visível. Além disso,
Bodas não é um filme sobre flamenco, o diretor não focaliza o virtuosismo dos
bailaores, mas todo o conjunto de ballet flamenco, a dramaticidade do baile, a
atuação dos bailaores. Assim, por meio do flamenco, e subtraindo o texto de
Lorca, Saura cria uma obra essencialmente lorquiana. Com o processo de
minorização pensado por Deleuze, Saura traz à cena elementos da obra de Lorca
que ficariam obscurecidos com os elementos de poder, como a linguagem textual
ou personagens que por meio de seus simbolismos lorquianos — como o personagem
da Mendiga, que para muitos estudiosos simbolisa a morte, ou elementos que
caratcterizaram a obra lorquiana como a Lua ou o coro, que em Bodas é
representado pelos Lenhadores — e sociais, como o Pai da Noiva, personagem que
centraliza muitos diálogos e cenas da peça. Assim, com a subtração de elementos
de poder e com o uso do flamenco como elemento narrativo, Saura coloca em
evidência o que realmente importa: o triangulo amoroso que caminha para sua
tragédia quando abre mão dos códigos e normas sociais, como as bodas
organizadas pelos pais, e dá vazão ao desejo entre os dois amantes; a estória
da vingança do Noivo que se sente desonrado e que aceita a morte honrada à vida
vergonhosa de ter sido abandonado.
O flamenco, elemento fundamental do espírito
lorquiano, é usado para recriar a obra original lorquiana com seus elementos
mais importantes. Assim, a minorização, pensada por Deleuze nos mostra o que de
fato importa e que segue viva na peça teatral, no flamenco de Gades ou no filme
de Saura. As Bodas de Sangue tanto as de Lorca quanto as de Saura nos
apresentam, por meios distintos, a trágica história amor que busca pela
liberdade para se realizar, mas que segue em direção à morte.
Referências Bibliográficas
1. ALVES, Syntia – O teatro de García Lorca: a arte que se levanta da
vida. Tese de
doutorado – PUC-SP, 2011.
2. CORREA, Gustavo - La poesía mítica de Federico García Lorca, Madrid,
Gredos, 1970.
3. DOMÉNECH, Ricardo - Garcia Lorca e a tragedia española. Madrid, Ed.
Fundamientos,
2008.
4. GARCÍA LORCA, Federico - Bodas de sangue. São Paulo, Ed. Peixoto
Neto, 2004
Obras Completas. Madrid, Ediciones Akal, 2008.
Obras Poéticas Completas. São Paulo, Martins Fontes, 2002.
5. GRANDE, Felix – García Lorca y el flamenco. Madrid, Mondadori
España, 1992.
6. MARTÍN, Eutimio. Federico García Lorca – Antología Comentada.
Madrid, Ediciones de
la Torre, 1988.
7. SALINAS, Pedro - Ensayos de literature hispánica. Madrid: Aguilar,
1958.
8. Saura, Carlos. Pueblos y gentes de España: fotografías de los años
cincuenta y sesenta, [online]. Madrid: Instituto Cervantes, marzo 2000. URL:
<
http://cvc.cervantes.es/artes/fotografia/saura/saura.htm>.
[Consulta: 9 de marzo de 2010].